O processo de formação de palavras por meio de cruzamentos vocabulares e/ou blends

Eliana dos Santos Rangel e Fernanda Cunha Sousa

O presente trabalho compara a posição de Margarida Basílio (2003) e Carlos Alexandre Gonçalves (2005) sobre os cruzamentos vocabulares ou blends. Para isso, serão analisados alguns exemplos apresentados por esses autores e outros coletados por nós com a finalidade de esclarecer alguns aspectos sobre tais construções, destacando a importância da recuperação das formas de base para garantir a força expressiva dos vocábulos formados.

The present project compares Margarida Basílio’s (2003) and Carlos Alexandre Gonçalves’ positions (2005) about the vocabular intersections or blends. For this, some examples showed by these authors and others collected by us will be analyzed with the purpose of clarifying aspects about these constructions, detaching the importance of the recuperation of basic forms to guarantee the expressive power of the formed vocables.

Introdução

        Gonçalves, em seu texto “Blends lexicais em português: não-concatenatividade e correspondência” reúne vários argumentos para mostrar que cruzamento vocabular não é um tipo de composição. Já Basílio, em “Cruzamentos vocabulares: o fator humorfológico”, considera o fenômeno do cruzamento vocabular como um tipo de composição.
        Para compreender melhor a questão sobre se considerar ou não o fenômeno dos cruzamentos vocabulares como um tipo de formação por composição, é necessário partir de uma definição do que seria uma formação composta. Adotamos, neste trabalho, a definição feita por Ingedore Grunfeld Villaça Koch e Maria Cecília Pérez de Souza e Silva em “Lingüística Aplicada ao Português: Morfologia”.
        Segundo essas autoras, vocábulos compostos são aqueles que contêm mais de um morfema lexical (que se situa no léxico, carrega consigo a carga semântica do vocábulo). A composição é um processo de formação de palavras no qual novos vocábulos são criados pela combinação de outros já existentes, gerando um novo significado a partir da combinação daqueles que lhe serviram de base. Há, portanto, uma fusão semântica dos morfemas lexicais, que pode ser mais ou menos completa, permitindo que se perceba com maior ou menor nitidez o significado de cada um dos elementos envolvidos no processo.
        A composição pode ocorrer por justaposição ou por aglutinação. Na justaposição, os vocábulos combinados mantêm uma autonomia fonética, ou seja, o acento e os fonemas que os constituem, como em passatempo e pé-de-vento. Na aglutinação, os vocábulos tornam-se um todo fonético com um só acento, podendo ainda ocorrer perda ou alteração de algum de seus segmentos, como em planalto e aguardente.
        Essa breve introdução permite compreender com maior clareza a opção de cada um dos autores estudados e perceber que há realmente base na noção de formação de compostos para justificar ambos os posicionamentos sobre a questão.
        Ao longo de seu texto, Gonçalves fará distinção entre blend, composição e formações analógicas. Opõe-se à visão de Sandmann (1990), que afirma serem os cruzamentos vocabulares um tipo de composição. Para Gonçalves, os cruzamentos vocabulares, chamados por ele de blends, são econômicos porque tendem a preservar a estrutura das bases prosódica e segmentalmente. Essas construções permitem a vinculação de certos segmentos a mais de um morfema, garantindo o maior número possível de relações entre formas lingüísticas.
        Analisando a estrutura interna desses cruzamentos, o autor defende que há várias diferenças entre composição e blend, já que, na primeira, há um processo morfológico aglutinativo, enquanto, no segundo, ocorre uma operação não-concatenativa. A afirmativa de que sempre haveria um processo morfológico aglutinativo na composição só se justificaria se o autor estivesse tomando por base de comparação somente a composição por aglutinação, seguindo as definições de Koch e Silva.
        O autor utiliza a definição de blend lexical como a “junção de dois vocábulos, sendo que o segundo é utilizado para completar parte do primeiro” (Laubstein, 1999, P. 1. Cf. Gonçalves, 2003 [2005], p. 150). Para ele, o fenômeno se diferencia da composição por constituir caso claro de morfologia não-concatenativa, pois a sucessão de bases pode ser, e muitas vezes o é, rompida por sobreposições.
        Apesar de terem duas palavras servindo de input para a formação de uma terceira, tal como na estrutura morfológica da composição, os blends se distinguem pela interseção de bases, e não pelo encadeamento, como ocorre na composição. Para fundamentar essa opinião, Gonçalves defende que a composição preserva a ordem linear de seus elementos formadores, ou seja, a segunda palavra se inicia no mesmo ponto em que a primeira termina. É importante frisar que, ao diferenciar os dois fenômenos, o autor utiliza o que chama de compostos regulares, as justaposições, desconsiderando, portanto, as aglutinações, apoiando-se em Villalva (2000), Rio-Torto (1998) e Silveira (2002), segundo os quais os compostos aglutinados, cujo resultado é uma só palavra prosódica, não são produtivos.
        Mas essa aproximação não é suficiente para igualar os dois fenômenos. Visto isso, concluímos que a diferença crucial entre os fenômenos de composição (regular) e os blends seria o fato de, no primeiro, cada um dos formativos projetar sua própria palavra prosódica sobre um nó, enquanto, no segundo, ambos os formativos constituem uma só palavra prosódica.
        E, já que as bases dos compostos são potencialmente livres, pode-se afirmar que equivalham a palavras morfológicas. No blend, como a combinação de palavras provoca a ruptura na ordem linear - uma das bases se realiza simultaneamente com uma parte da outra - não se pode afirmar que haja duas palavras morfológicas, pois a separação já não é mais possível.
        Gonçalves destaca a importância do fator fonológico afirmando que o blend é um processo de formação de palavras que acessa informações fonológicas, como a posição do acento nas palavras tomadas como base, o grau de semelhança fônica entre elas e a natureza estrutural da seqüência compartilhada pelas mesmas.
        Tais informações levam a crer que o fenômeno estudado não pode ser visto como uma substituição sublexical, como as criações analógicas, mas como uma fusão “não-linear de bases”, diferenciando-se também dos compostos, cuja ligação ocorre por encadeamento.
        Para Gonçalves, os blends são produtos da junção de dois vocábulos em “planos alternativos”, ao contrário das formações analógicas, produtos da junção de vocábulos em “planos competitivos”. Nessas substituições sublexicais, uma parte da palavra é reinterpretada, possibilitando a inclusão de uma seqüência que funcionará em “competição” com a seqüência que a substitui no produto final dessa junção. Ao interpretar esse novo vocábulo formado, o ouvinte acessa essas duas formas “concorrentes” para alcançar o objetivo comunicativo pretendido. É dessa reinterpretação que surgem o cômico, o inesperado, o grotesco e, especialmente, a expressividade.
        Para esclarecer o que seria uma formação analógica, o autor utiliza o exemplo de “comemorar”, em que a primeira parte da palavra é reinterpretada, como se tivesse um elemento comum a “comer”, podendo, assim, ser oposta a “beber”. Temos, então, como resultado expressivo do processo que, num festejo regado a muita bebida, os envolvidos estão numa situação de “bebemorar”. O autor dá outros exemplos dessa reinterpretação seguida de oposição de sentidos: em “tricha”, “tri-” se opõe ao sentido reinterpretado de “bi-” (duas vezes), fazendo uma espécie de gradação de intensidade do comportamento efeminado. Consideramos essa explicação satisfatória também para explicar construções correntes como “trêbado”, em que o falante reinterpreta o “b-” de “bêbado” como portador do sentido de “bi” (duas vezes) e o opõe a “tr-”, entendido “tri-“ (três vezes) para dar maior ênfase ao grau de alcoolismo em que se encontra a pessoa assim caracterizada.
        Mas essa oposição não fica tão clara para nós no caso de “mãedrasta”, apresentado pelo autor. Acreditamos que uma oposição mais clara de sentidos seria estabelecida se o exemplo dado fosse “boadrasta”, em que “ma” seria reinterpretado como indicador de crueldade, estabelecendo oposição com “boa”, como acontece em “boacumba”. E vale ressaltar aqui uma interessante observação: o falante faz essa reinterpretação do vocábulo madrasta, agregando valor pejorativo a ma- como se fosse um prefixo, pois já não é mais perceptível para ele sincronicamente o processo da formação desse vocábulo, em que temos o radical madr- (mãe) e o sufixo que agrega valor pejorativo –asta (LELLO, s/d., vol.3, p. 130), ou seja, esse valor negativo já havia sido marcado anteriormente na formação do vocábulo, mas, ao perder essa percepção, o falante reforça o valor pretendido por meio de um novo recurso, no caso, a oposição entre ma- e boa-. Defendemos, portanto, que “mãedrasta” como exemplo de formação analógica é discutível; seria mais bem classificado como blend. Uma interessante formalização utilizada pelo próprio autor em outros casos pode mostrar a correspondência de um-para-muitos (entre formas de base e forma cruzada) típica dos blends, que atestamos existirem também no exemplo a seguir:


        Como podemos ver, em “bebemorar” e “tricha”, embora os significados reinterpretados de “como” e “bi” sejam inferidos pelo ouvinte, não estão expressos no novo vocábulo. O que não acontece no presente exemplo: tanto “mãe” quanto “madrasta” estão presentes, mesclados no vocábulo formado.
        Ainda discutindo os exemplos dados pelo autor para marcar a diferença entre blend e criação analógica, questionamos: se blend é mistura não linear de bases, por que considerar “framburger” como blend e não como substituição sublexical, uma vez que não há junção provocada por semelhança fônica e temos uma reinterpretação seguida de oposição? Acreditamos que, para formar este exemplo, o falante reinterpreta a forma “hamburger” ({0} amburger) como se referindo a produto de carne bovina, opõe, então, o {0} significativo no início da palavra a “fran”, representando produto no qual se utiliza carne de frango, em vez da bovina. A diferença entre os dois fenômenos seria o recurso da reinterpretação de uma das partes do vocábulo, que é reforçada pela semelhança fônica entre os vocábulos [ã].
        As discussões estabelecidas pelo autor fazem-nos entender que o que determinaria o blend seria também o fato de não haver um ponto de quebra claro - como defendemos existir em “framburger”, “bebemorar” e “tricha” - mas sobreposição, como em “gayroto”, “tristemunho” e “apertamento”. Não haveria, portanto, uma fronteira, mas sim uma seqüência entrecruzada. Os blends exploram a possibilidade de um único segmento do vocábulo resultante da junção corresponder a dois ou mais segmentos das formas de base, ou seja, tal segmento torna-se ambimorfêmico. Segundo Gonçalves, a ambimorfemia é a melhor maneira de garantir fidelidade às formas de base.
        Um exemplo muito interessante seria o nome de um bar de Belo Horizonte - “Abarcateiro” - em que a ambimorfemia é quase total. A construção morfológica nomeia um bar montado numa residência antiga do bairro Cruzeiro; e, para manter o ambiente, as mesas foram montadas sob um antigo abacateiro, o que virou o atrativo do local.


        Para nós, um importante aspecto dentro dessa discussão sobre os blends seria a afirmação de que, nesse fenômeno, “a fusão de palavras-matrizes sempre ocorre no ponto em que elas apresentam maior semelhança fônica, pois é só assim que o cruzamento pode alcançar perfeita satisfação de fidelidade nas restrições MAX (FB-BL)i e IDENT (FB-BL)ii ” (GONÇALVES, 2003 [2005], p. 158-160). Mas devemos lembrar que o autor explora exemplos em que essas e outras restrições de fidelidade podem ser infringidas em função da formação de um vocábulo que transmita a idéia desejada da melhor forma possível.
        Gonçalves também fala sobre os casos de cruzamento em que as palavras-matrizes não apresentam segmentos em comum. Nesses casos, a fidelidade dos blends a suas bases é fundamental para determinar um ponto de fusão que permita a recuperação dessas bases. É o que ocorre em “portunhol”, por exemplo. A quebra é feita de acordo com a melhor possibilidade de rastreamento das palavras matrizes. Esse caso que se aproximaria do que Basílio defende, sobre a possibilidade de uma parte de um vocábulo representar, em determinada situação, o todo. Aqui não ocorreria a mescla tão bem defendida por Gonçalves ao longo de seu texto. Talvez por isso, esse tipo de blend possa se aproximar do que se entende por composição.
        Já para Margarida Basílio,

“o cruzamento vocabular pode ser considerado como um tipo de composição, na medida em que sua formação envolve duas palavras, e o processo correspondente envolve o mecanismo de formar uma nova palavra cujo significado e forma final decorrem diretamente da combinação de duas palavras” (Basílio, 2003, p. 1).

        Defende que exemplos análogos aos utilizados em seu texto, como “presidengue” e “pitboy”, podem também ser analisados como trocadilhos, composições ou formações analógicas.
        Mesmo assim, aponta a necessidade de se considerar o cruzamento vocabular como um fenômeno distinto das composições em geral. Segundo ela, somente a análise de cruzamentos vocabulares como reestruturações mórficas e integrações conceptuais é capaz de captar os elementos simultaneamente necessários para alcançar o efeito expressivo desejado, admitindo-se que o padrão de estrutura da composição exerce importante função nessas construções. O resultado de um cruzamento vocabular é determinado pela composição fonológica e semântica dos elementos utilizados como base.
        Os cruzamentos vocabulares são baseados numa construção morfológica bem sucedida que conduz a uma quebra simultânea de expectativas, na medida em que a reestruturação morfológica feita força uma reestruturação conceptual.
        Em relação às posições que se opõem radicalmente, como as dos estudiosos Gonçalves e Sandmann, a autora prefere assumir a posição de que “a separação ou não dos fenômenos é de caráter terminológico e pode depender dos objetivos da descrição, para a qual a relevância maior estará nos pontos de semelhança ou nos pontos de diferença” (Basílio, 2003, p. 1).
        Basílio concorda com a argumentação de Gonçalves quanto à relevância de o processo ser ou não concatenativo, mas isso do ponto de vista fonológico. Já sob enfoque morfológico lexical, afirma que, se forem comparados derivação e composição sobre a possibilidade de emergência de significado, a composição ficará de um lado, incluindo o cruzamento vocabular, e a derivação de outro, devido ao teor pré-determinado nas formações derivadas, ao contrário das compostas.
        Basílio também concorda com a argumentação de Gonçalves no que diz respeito aos critérios estruturais fonológicos a serem obedecidos pela compactação mórfica, apesar de não se aprofundar nessa questão. E destaca ainda um ponto não abordado por Gonçalves: o humor gerado por essas construções; defende que o efeito cômico gerado constaria como importante objetivo a ser alcançado por tais compactações.
        O humor viria como resultado dessa sobreposição de sentidos, dessa “fonte dupla” de interpretação. A “quebra” de sentidos não seria somente conceptual, mas também morfológica. Esses cruzamentos não são sempre humorísticos, mas sua principal motivação deve-se a seu poder expressivo. Alguns casos podem ser parcialmente descritivos, como “lambaeróbica” e “brasiguaio”, por Basílio, e a expressão utilizada pela apresentadora de televisão Leda Nagle ao se autodefinir como “mineiroca” - mineira que vive no Rio; mas, no cruzamento típico, de caráter humorístico ou retórico, a parte inesperada qualifica forte, e até grotescamente, a parte básica, como acontece também com “urubuservar”, usado para fazer referencia a alguém que, de modo agourento, observa algo.
        Basílio afirma que “o significado de elemento interferente é de caráter predicativo, constituindo-se numa predicação efetiva ao referente da palavra básica, sobretudo de caráter metafórico” (Basílio, 2003, p. 3). O significado desse elemento interferente deve se incorporar ao da palavra básica respeitando os aspectos segmentais, rítmicos e acentuais desta, para não prejudicar sua percepção estrutural global, mas, é claro, marcando adequadamente a diferença de sentido a que se propõe. A importância de se respeitar tais aspectos para a formação satisfatória dos blends também é apontada ao longo do texto de Gonçalves.
        Ela defende que casos como “pitboy” e “burrocracia” apresentam estrutura de composição, em que a base é recomposta. Essas expressões reforçam a hipótese de que, em tais construções, teríamos a primeira parte do vocábulo atuando como especificador e a segunda como termo especificado. O elemento “pit-“ representaria o todo “pitbull”, dando características (negativas) desse animal ao jovem designado, representado por “boy”; “-cracia” representaria o todo “democracia” e “burro-“ qualificaria essa democracia. O mesmo aconteceria em casos como “tristemunho” (testemunho triste) e “boilarina” (bailarina pesada como um boi).
        Mas essa descrição de Basílio pode ser discutida, tendo-se em vista as colocações de Gonçalves, segundo as quais um único segmento pode estar ligado a duas formas de bases, são os segmentos ambimorfêmicos. O autor vê o mesmo exemplo de outra maneira:


        Por esse exemplo analisado de duas maneiras, compreendemos melhor os pontos de vista de ambos os autores e suas justificativas. De fato, se Basílio vê, no exemplo dado, “-cracia” retomando um todo (burocracia) e “burro-“ apenas como predicador sem abordar mescla de significados entre eles, justifica-se o fato de admitir uma visão mais próxima entre cruzamentos vocabulares e os fenômenos de composição. E já que Gonçalves frisa a mescla que defende haver entre os termos presentes no processo de cruzamento, fica clara sua motivação em distingui-los dos fenômenos de composição.
        Basílio observa que a maioria dos casos de cruzamento vocabular apresenta essa estrutura em que o elemento predicador surge na primeira parte do vocábulo, e o elemento predicado aparece na segunda parte. Essa maior ocorrência das predicações na primeira parte do vocábulo demonstra a importância da estrutura de composição de base presa nessas construções. Teríamos, então, um processo morfológico denominado por ela como recomposição. Seria um processo de composição em que a interferência de um elemento sobre outro provoca uma nova combinação de significados e significantes.
        Mas essa estrutura de composição corresponderia a apenas um dos instrumentos. O fator principal a ser considerado seria o da iconicidade: “o valor expressivo dos cruzamentos vocabulares é efeito da integração fonológica que espelha e reforça a integração conceptual” (Basílio, 2003:4).
        O autor não chega a tratar claramente da questão de a primeira parte do vocábulo ser um predicador da segunda, mas, através de suas explicações sobre o sentido da maioria dos cruzamentos, percebe-se que essa noção está presente, como em “gayroto” (garoto com trejeitos homossexuais) e “chafé” (café fraco como chá).
        Margarida Basílio afirma que os cruzamentos são formações especialmente lexicais por confrontarem o requisito da linearidade das construções.
        Ao longo de sua análise, mostra que a força expressiva desses cruzamentos é resultado de uma dupla quebra de expectativas. “Há uma expectativa subitamente frustrada, resultante de uma construção em que a parte surpresa ao mesmo tempo predica e nomeia a parte base de um modo tanto mais forte quanto inesperado” (Basílio, 2003:1). A expectativa morfológica criada pela estrutura da palavra e o poder de condensação do vocábulo composto predicam a construção grande poder expressivo.
        É interessante frisar, portanto, que, nos blends, uma forma não se sobrepõe simplesmente a outra, as duas interagem e projetam uma terceira forma que selecionará das duas primeiras que lhe serviram de base apenas as características relevantes ao propósito comunicativo dessa formação. Características essas que ganharão, nessa nova formação, um sentido próprio e inovador (ainda que relacionado às bases).
        As discussões feitas ao longo dessa análise fazem uma importante ligação entre os textos de Gonçalves e Basílio, tornando-os complementares em vários aspectos, pois, ao ler o texto de Basílio, percebemos que a questão fônica é de fundamental importância com relação aos quesitos morfológicos e à satisfação das restrições de fidelidade dessas estruturas, mas é também imprescindível para a explicação do efeito humorístico obtido com tais construções. Ele explica com clareza as diferenças entre os conceitos, enquanto ela destaca o humor. Gonçalves ressalta os segmentos ambimorfêmicos e Basílio aponta o inesperado gerado por essas construções. É a questão da semelhança fônica em contraponto com a disparidade de sentidos entre os termos de base que gera o cômico na construção obtida.
        E, embora discordemos de alguns posicionamentos desses autores, consideramos suas análises de grande importância para suscitar a reflexão sobre o tênue limite entre as categorias abordadas e o rico e produtivo processo de criação de vocábulos pelos falantes da língua de acordo com suas necessidades comunicativas, ou seja, para atender a propósitos comunicativos particulares. A cada dia surgem novas e interessantes construções, que desafiam os estudiosos quanto a sua explicação e classificação.
        Gostaríamos de frisar que estamos avaliando o sentido básico criado a partir dessas mesclas ou junções. Porém, não devemos, é claro, ignorar a questão da importância de cada contexto específico de uso, que pode agregar novos sentidos a essa base, mas defendemos que esse ponto de partida fará sempre parte do jogo, mesmo quando este pretender contrariá-lo.
        Os exemplos analisados até agora constituem construções que já ganharam espaço na sociedade, são facilmente compreendidas pelos falantes em diferentes situações comunicativas e podem fazer parte da comunicação de diferentes gerações. Mas há construções que possuem “prazo de validade” muito claro. Sua duração está diretamente ligada à relação que dois termos possam ter num contexto muito específico e, mudado esse contexto, essas construções passam a não fazer mais sentido, perdendo, assim, a motivação para seu uso.
        É o caso, por exemplo, de construções apresentadas no programa humorístico da Rede Globo, Casseta e Planeta, como um personagem denominado no programa do dia 13 de setembro como “Murilo Boinício”, numa clara referência ao ator Murilo Benício, que interpretava um peão na novela “América”, da mesma emissora durante o ano de 2005. Houve uma mescla entre o sobrenome do ator e o animal com que seu personagem trabalhava na trama.


        Mas esse tipo de junção só faz sentido enquanto a trama está no ar, enquanto os telespectadores ligarem a figura do ator ao trabalho com esse animal. Terminada essa relação, termina também a possibilidade de recuperação do sentido dessa junção e o vocábulo tende a desaparecer.
        O mesmo acontece com as construções que têm como referência o meio político. O citado programa trouxe, no dia 20 de setembro de 2005, referências a duas figuras do cenário político atual como Deputado Rouberto Jeferson e Presidente da Câmara Jeguerino. No primeiro, funde-se o primeiro nome do deputado a sua conduta, que veio a público durante o processo de apuração de corrupção que estremece o país atualmente. No segundo caso, também ligado a apuração de corrupção, mescla-se o nome do presidente da Câmara ao de um animal que faz, ao mesmo tempo, referência à origem nordestina do político e a pouca inteligência demonstrada pelo mesmo ao ser pego numa extorsão considerada primária.


        Como podemos ver, discussões teóricas à parte, há uma riqueza enorme de recursos possíveis para formação de novos vocábulos, todos de pleno domínio dos falantes, tanto para produção como para interpretação. E a possibilidade de recuperação das formas de base, integral ou parcialmente, é de fundamental importância para a eficácia do processo.

Eliana dos Santos Rangel é graduada em Letras com Licenciatura em Português pela UFJF, cursa o 2o ano de Mestrado em Letras - área de concentração em Lingüística pela mesma instituição. Área de interesse: Sociolingüística interacional. e-mail:lilipedrita13@yahoo.com.br.

Fernanda Cunha Sousa é graduada em Letras com Licenciatura em Português e Latim pela UFJF, cursa o 2o ano de Mestrado em Letras - área de concentração em Lingüística pela mesma instituição. Trabalho recente: O que é a Lingüística cognitiva? (prelo da Revista Gatilho – UFJF). Área de interesse: Sociolingüística variacionista diacrônica. e-mail:fefajf@ig.com.br.

Referências

BASÍLIO, Margarida. Cruzamentos vocabulares: o fator humorfológico. 2003. Apresentação de trabalho. Congresso. XII Congresso da ASSEL-RIO. Rio de Janeiro. 17/11 e19/11.

GONÇALVES, Carlos Alexandre. Blends lexicais em português: não-concatenatividade e correspondência. Veredas: revista de estudos lingüísticos, Juiz de Fora, vol. 7, n. 1 e 2, p.149-167.

KOCH, Ingedore G. V. e SILVA, Maria Cecília P. S. e. Lingüística Aplicada ao Português: Morfologia. São Paulo: Cortez, 1995, 8a ed.

LELLO, José & LELLO, Edgar. Dicionário enciclopédico luso-brasileiro em 4 volumes, 3o vol. Porto: Livraria Lello e Irmão, s/d.

SALOMÃO, Maria Margarida Martins. Gramática e interação: o enquadre programático da hipótese sócio-cognitiva sobre a linguagem. Veredas: revista de estudos lingüísticos, Juiz de Fora, vol. 1, n. 1, 2000, p.23-39.

Notas

1 O termo significa Maximização das Formas de Base, preceito segundo o qual cada elemento das formas de base deve apresentar um correspondente no blend lexical.
2 Identidade de traços entre blend e Forma de Base, segundo o qual os elementos correspondentes devem ter o mesmo valor para o traço F, não podendo haver permuta entre traços da forma de base e o blend, a especificação de seus segmentos deve representar aquela estabelecida em FB.